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Para não dizer que não falei dos 60 anos de Tarantino

Oxe! Perdi-me na data, mas, para dizer a verdade, nem sabia que Quentin Tarantino completou na segunda, 27, 60 anos. Escrevi, para uma editora gaúcha – a Artes e Ofícios -, um livro comemorativo do centenário do cinema. Dei-lhe o título ‘Cinema – Um Zapping de Lumière a Tarantino’. Meu amigo Walter Hugo Khouri disse que eu iria arrepender-me. Desde a primeira hora, ele achou Tarantino uma excrecência. Para quem amava Ingmar Bergman, como ele, era mesmo. Já contei, mas acho que vale repetir. Estava em Cannes, em 1992. Havia visto sei lá que filme. Encontrei o saudoso Paulo de Góes, que me convidou a ver esse filme, Cães de Aluguel, que, segundo ele, estava sendo bem falado em Hollywood. Vimos. Paulo insistiu para que fôssemos à coletiva. Tarantino ainda não era ninguém. Havia meia-dúzia de pessoas na sala. Fizemos um círculo com as cadeiras, foi uma das coletivas mais informais de que participei na vida. Dois anos depois, Tarantino voltou a Cannes e ganhou a Palma de Ouro por Pulp Fiction – Tempo de Violência. Já era uma celebridade cannoise.

De alguma forma terminei por dar razão a Khouri. Quando a Artes e Ofícios me informou que o livro vendia bem e seria reeditado, recusei. Estava encantado com Baz Luhrmann, Moulin Rouge, o cinema estava em pleno processo de mutação com as novas tecnologias. Ofereci escrever outro livro. Eles aceitaram, mas havia um prazo exíguo. Um deadline de semanas, um mês, talvez. Escrevi voando Cinema – Entre a Realidade e o Artifício. Tarantino iniciou uma revolução no cinema norte-americano, disso não tenho dúvida. O diálogo taco no taco, as digressões, a violência. Gostei de Jackie Brown. Lembro-me que a Miramax fez uma grande festa no salão principal do Hotel Carlton para mostrar cenas de Bastardos Inglórios. Tarantino começava a reescrever a história. Adolf Hitler morria naquele cinema em Paris. Anos depois, em Era Uma Vez em Hollywood, Brad Pitt conseguia evitar o assassinato de Sharon Tate.

Tarantino e os Weinstein. Em Cannes eram colados. Não creio que ele não soubesse do comportamento abusivo de Harvey. Talvez não quisesse – ver, saber. Khouri tinha razão. Sacou, antes de mim, que terminaria por me desinteressar de Tarantino. Seus filmes ingressaram numa curva descendente – Kill Bill 1 e 2 – apesar da luta de Uma Thurman e Daryl Hannah no trailer -, Bastardos, Django Livre, Os Oito Odiados, Era Uma Vez. Tarantino veio a São Paulo para lançar Os Odiados. Na entrevista – individual – Tim Roth e ele estavam juntos. Foram insuportáveis. Não sei se estavam drogados, mas riam o tempo todo, fazendo piadinhas entre eles. Sempre tive a impressão de que, se os tivesse entrevistado numa junket, em Hollywood, teriam reagido diferentemente. Teriam sido profissionais. Aqui, era algo como o c… do mundo para eles. Talvez decepcione Fábio Lima com esse post. Ele não apenas lembrou o aniversário, como me pede para falar de cenas marcantes dos filmes de Tarantino, de suas trilhas. Ennio Morricone, claro. A cena? A morte/punição de Samuel L. Jackson como aquele preto sem consciência de Django. Quando ele vai, já vai tarde, o fdp.

Daqui a pouco estarei saindo de casa para a cabine de Pacifiction. Gosto tanto de Albert Serra. E o Benoit Magimel foi melhor ator no César, o Oscar francês. Hoje tenho de dar um jeito de ver Skinamarink – Canção de Ninar. Daqui a pouco começarão as cabines do É Tudo Verdade, e a prioridade serão os documentários. Antes preciso saldar o que, para mim, já virou dívida. Entrevistei Rafael Primot, Júlia Lemmertz e Leona Johvs pela série dele no Canal Brasil, Chuva Negra e ainda não publiquei nada. Sigo de castigo no jornal. Ainda bem que tenho o blog.

…E se o Oscar de 1950 tivesse ido para Anne Baxter?

Estou voltando da coletriva de imprensa de lançamento do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, que foi seguida pela cabine de uma das atrações deste ano – Liberdade em Chamas, o doc de Evgeny Afeenievsky sobre a Guerra da Ucrânia, com seu cortejo de atrocidades. Havia iniciado o post que vocês vão ler agora. Vou deixar o É Tudo Verdade para depois. O festival, afinal, começa só no dia 13.

Embora seja de lá, poderia dizer, como Douglaspizza, que não sabia da existência deste Dia do Cinema Gaúcho. O grave, no meu caso, é que cheguei a escrever um livro sobre a atividade cinematográfica no Rio Grande. Massao Hoshoda e Fernando Severo já me corrigiram – O Tigre e o Dragão foi dirigido por Ang Lee e o segundo acrescentou, “A superestimada Michelle Yeoh nunca trabalhou com Zhang Yimou.” Gosto da Michelle, não creio que seja superestimada, mas é o Fernando dizendo, e ele não se chama Severo por acaso. André Roquete diz que nunca viu Cavalgada Com o Diabo. Seu Ang Lee preferido, com roteiro de Emma Thompson, é Razão e Sensibilidade, adaptado de Jane Austen. Gosto muito desse Ang Lee, mas em matéria de Jane Austen no cinema meu favorito é Orgulho e Preconceito. É um filme que não me canso de (re)ver. Keira Knightley e Matthew MacFayden formam uma dupla, que, de alguma forma, me comove. E a direção de Joe Wright é esplêndida. Seus planos-sequências me deixam chapado. A cena do baile! E o final, quando Macfayden, como o Sr. Darcy, vem andando pelo campo, com aquele casaco longo sacudido pelo vento.

Eu amava Joe Wright. Sua adaptação de Ian McEwan, Atonement, me parece belíssima. Keira Knightley naquele vestido verde, o plano sequência do desembarque dos soldados aliados na praia. E a mentira de Briony, que causa muito mais estragos do que a guerra em todas aquelas vidas. Desejo e Reparação. É outro filme que revejo sempre, mas, como Orgulho e Preconceito, não há. Marcos Bernstein tirou do livro de Jane Austen a inspiração para três das cinco irmãs de sua novela Orgulho e Paixão. Como roteirista e diretor, Bernstein é atraído por gêneros. Já reclamei que, no cinema atual, gênero virou sinônimo de terror. Na novela, Bernstein criou cenas de musicais como nunca havia visto na produção dramatúrgica de TV. E a novela tinha Nathalia Dill como Elisabeta, Thiago Lacerda como Darcy.

Hélio Fogaça considera as interpretações de Bette Davis e Gloria Swaonson em A Malvada/All About Eve e Crepúsculo dos Deuses/Sunset Boulevard as maiores do cinema. Escrevi que, extraordinárias como foram nesses filmes, as duas terminaram por anular as respectivas chances no Oscar, abrindo espaço para a vitória de uma tertius, e foi Judy Holliday, por Nascida Ontem. Fogaça pergunta-me se creio mesmo nisso, no anulamento das candidaturas de duas grandes atrizes, ou se é lenda? É um pouco como a vitória de O Pagador de Promessas em Cannes, em 1962. Havia todos aqueles filmes de grandes diretores – Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Luis Buñuel, etc -, e no impasse o júri optou pelo filme brasileiro de Anselmo Duarte. Pode ser que seja verdade, mas Anselmo, no livro com a entrevista que me concedeu para a Coleção Aplauso, nunca se esqueceu do sorriso luminoso de François Truffaut, e do gesto positivo do então jurado com o polegar, após a sessão do Pagador. Se não fosse bom, o filme não teria levado.

No seu The Academy Awards Handbook, John Harkness lembra que nunca houve uma disputa de melhor atriz como naquele ano. Billy Wilder escreveu o papel de Norma Desmond para Mae West e depois da recusa dela tentou Mary Pickford e Pola Negri. Foi George Cukor quem lhe sugeriu que – talvez – Gloria Swanson fosse perfeita no papel. Joseph L. Mankiewicz também escreveu o papel de Margo Channing para Claudette Colbert, mas ela sofreu um acidente e ele teve de substituí-la… por Bette Davis! A própria Judy Holliday, que Hélio Fogaça tanto menospreza. Harry Cohn, o todo-poderoso owner da Columbia comprou o projeto para Rita Hayworth, mas ela preferiu seguir adiante com o romance com Ali Khan. Sobrou para Judy, o que leva Harkness ao seguinte raciocínio. Se Mae West, Claudette Colbert e Rita Hayworth tivessem feito os filmes e fossem indicadas, muito provavelmente o Oscar teria ido para… Anne Baxter, a Eve, que a gente até esquece que foi outra das finalistas daquele ano para melhor atriz. Esquece injustamente, porque Anne já havia vencido o Oscar de melhor coadjuvante de 1946 por O Fio da Navalha, que Edmund Goulding adaptou do romance de Somerset Maugham.

Viajando com os orientais. Gong Li, Temptress Moon, a lua sedutora

Massao Hoshoda tem toda razão. O Tigre e o Dragão é do taiwanês Ang Lee, e não de Zhang Yimou, como creditei no post anterior. Tive o que considero o privilégio de entrevistar Zhang algumas vezes. Certa vez, em Cannes, acho que foi no ano de Adeus, Minha Concubina, de Chen Kaige, a Look – ou terá sido a Playarte? – colocou os jornalistas brasileiros numa caravana de carros, com direito a batedores. Fomos a um restaurante em Cap D’Antibes, um luxo. Não sei se foi nesse restaurante ou em outro, mas entrevistei Gong Li e o grande fotógrafo Christopher Doyle, um australiano que fez carreira no cinema chinês, onde era conhecido como Du Kefeng. Gong repassou sua carreira com Zhang. Ele, tenho certeza de que entrevistei em Berlim, onde surgiu para o mundo com O Sorgo Vermelho. Talvez seja um romântico, talvez confunda as coisas, mas acho que Zhang nunca foi melhor do que no seu período com Gong, que Woody Allen nunca foi melhor do que com Mia Farrow.

É conhecida, famosa?, a história de Doyle no primeiro dia no set de Temptress Moon. Gong chegou e perguntou ao diretor de fotografia – ‘Onde está minha marca?’ Ele respondeu – “Não existe marca nenhuma, faça como quiser e a câmera a seguirá.’ Não sei por quê, mas essa história sempre me comoveu muito. Naquele breve encontro, tive a impressão de que Christopher era apaixonado por Gong. Quem não? Sou louco por esses, e essas, orientais. Se tiver de ser ser muito seletivo escolherei Wong Kar-wai e Tsai Ming-liang. Apichatpong Weerasethakul? Estou misturando todos – chineses, taiwaneses, tailandeses. Zhang decepcionou-me com seu épico em língua inglesa, A Grande Muralha. Ang Lee com aquele horroroso, ou quase, Projeto Gemini. Talvez decepcione, mas o ‘meu’ Ang Lee, apesar dos Oscars que ele recebeu por O Segredo de Brokeback Mountain e As Aventuras de Pi, é o de Cavalgada com o Diabo, um western de 1999, ambientado na Guerra Civil, com Tobey Maguire e Skeet Ulrich.

Volto à Empire de fevereiro. A revista tem, na última página, uma seção chamada Classic Scene. um autor conhecido é sempre chamado a revelar, e dissecar, sua cena favorita. Nessa edição, Sam Mendes escolhe a cena do restaurante em O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, quando Michael Corleone/Al Pacino marca encontro com o chefe de polícia corrupto, pede licença para ir ao banheiro, recolhe a arma que foi deixada ali e dispara contra Sterling Hayden. Mendes considera a cena ao mesmo tempo simples e complicada, ‘in so many levels’. E acrescenta – ‘É uma obra-prima sobre como construir a tensão.’

A Empire, celebrando atores e atrizes. Aquelas cenas com Sidney Poitier e Bette Davis. E o Dia do Cinema Gaúcho

Pronto! Já fui informado de que a frase sobre a vida, no post anterior, é de John Lennon, numa música dedicada ao filho. Beautiful Boy – ‘Life is what happens to you/While you’re busy making other plans’. Acho que vou adotá-la. A vida é o que ocorre quando a gente está ocupado fazendo planos. Enquanto isso, o kerb continua. Emília Silveira volta amanhã para o Rio e ainda quer sair hoje à noite. Com certeza! Já dei conta de duas das três revistas que comprei na semana passada na banca do Conjunto Nacional, a Sight and Sound dos 100 melhores/maiores filmes de todos os tempos e a Total Film com a preview dos grandes filmes de 2023. Havia ficado faltando a Empire de fevereiro, com Nicolas Cage na capa. The greatest actors issue – ‘Saudamos os maiores performers do cinema.’ A extensa reportagem inclui verdadeiras pérolas. Tim Burton sobre Jack Nicholson, Ridley Scott sobre Joaquin Phoenix, Baz Luhrmann sobre Nicole Kidman, Ang Lee sobre Heath Ledger, Gina Prince-Bythewood sobre Viola Davis e a masterclass de interpretação de Tilda Swinton.

A par desses textos, a revista lembra cenas chaves. Killer scenes. Na carreira de Sidney Poitier foi aquele tapa em No Calor da Noite/In the Heart of the Night, de Norman Jewision, que venceu o Oscar de melhor filme em 1967. Rememorando. O policial negro, Virgil Tibbs/Poitier, ajuda o xerife branco, Rod Steiger, a investigar um crime no Sul profundo. Vão à casa de um poderoso proprietário de terras, dono de uma plantação de algodão que emprega predominantemente trabalhadores negros, como na era da escravidão. Virgil chega educado, manso, fazendo perguntas que começam anódinas e vão crescendo de intensidade. O grão-senhor, incomodado, tenta enquadrá-lo. Chama-o de ‘boy’. Virgil segue com o interrogatório, o velho – é um velho – tenta estapeá-lo. Virgil consegue desviar-se da bofetada, e revida. Seu tapa desestabiliza o sujeito, que cai sentado e revida verbalmente, ensandecido. ‘Como esse negro ousa?’

O tapa, conta a revista, não estava no roteiro de Stirling Silliphant, que venceu o Oscar de screenplay asdaptado. Foi uma ideia de Poitier, que ele conseguiu impor. Poitier já havia recebido o Oscar – por Uma Voz nas Sombras/Lillies of the Fields, de Ralph Nelson, de 1963 -, mas o mito estabeleceu-se com o Virgil Tibbs de In the Heart of The Night, mesmo que tenha sido Rod Steiger, como o xerife branco, a vencer o prêmio da Academia como melhor ator daquele ano. Fiquei viajando nas histórias que Empire recupera. A luta decisiva de Yu Shu Lien/Michelle Yeoh em O Tigre e o Dragão, de Zhang Yimou. A killer scene de Bette Davis. Margo Channing, naquela escadaria, revidando contra Eve/Anne Baxter, que quer lhe tirar tudo. A carreira, o amante. Margo/Bette não esbofeteia Anne Baxter. Agride-a verbalmente.

Joseph L. Mankiewicz, que já havia recebido os Oscars de melhor direção e roteiro por Quem É o Infiel?/A Letter To Three Wives, em 1949, repetiu os dois prêmios no ano seguinte por A Malvada/All About Eve, e ainda somou o de melhor filme. Curioso, não? A escadaria também é importante em Sunset Boulevard/Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, do mesmo ano. A Malvada, sobre os bastidores do teatro. Crepúsculo dos Deuses, com Gloria Swanson como Norma Desmond, sobre os bastidores do cinema. Duas das maiores interpretações femininas da história do cinema. Bette e Gloria terminaram por anular-se. Sem conseguir escolher entre uma e outra, a Academia outorgou o prêmio a Judy Holliday, por Nascida Ontem, de George Cukor. Ninguém chiou. Judy também é extraordinária no papel da amante de um milionário inescrupuloso que toma aulas de etiqueta com um jornalista/William Holden para adquirir o mínimo de traquejo social. Imaginem se não surgem faíscas entre os dois.

Estou saindo para almoçar e ir ao cinema, mas não encerro o post sem lembrar que hoje – 27 de março – é o dia do cinema gaúcho. A data foi escolhida porque nela ocorreu a primeira exibição documentada de um filme feito no Rio Grande, e foi O Ranchinho do Sertão, de Eduardo Hirtz, em 1909.

Em meio a um fim de semana de festa, tive minha iniciação. Maratonei com O Agente Noturno!

Terminou! Não foi uma simples comemoração de aniversário, a de meu amigo Orlando Margarido. Foi um kerb – três dias de festa que começou na sexta, 24, naquele restaurante da Vila Medeiros, o Mocotó, prosseguiu no sábado no Paquito, em Santos – com direito a esticada no apê de Luiz Zanin Oricchio e Maria do Rosário Caetano, para terminar ontem no apartamento de Marcus Fernando e Renata, na Santa Cecília, onde Emília Silveira nos mostrou o corte definitivo de seu doc sobre o senador Nelson Carneiro e a cruzada dele em defesa das mulheres, e da implementação do divórcio no Brasil. Nesse período todo fiquei três dias sem postar. E agora, a surpresa. A Netflix me enviou o link de sua nova série, que estreou dia 23. O Agente Noturno, de Shawn Ryan, criador de The Shield – que não vi. Logo na abertura, Peter/Gabriel Basso impede a explosão de uma bomba no metrô, mas de herói passa a suspeito pelo fato de que seu pai foi incriminado como traidor no passado.

Peter vai trabalhar como agente noturno na Casa Branca. Opera um telefone secreto, uma linha especial destinada a acolher mensagens de agentes de contraespionagem. O primeiro telefonema é de Rose/Luciane Bachanan, cujos tios acabam de ser mortos, mas antes disso a orientam para ligar àquele número. Peter a toma sua proteção, descobrem uma grande conspiração que envolve gente graúda da Casa Branca, e do Serviço Secreto. O quadro amplia-se – a ligação da superior de Pete com a presidente, a agente preta que protege a filha do vice-presidente, codinome Doninha. Todos os amigos que ajudam Pete e Rose começam a morrer de morte violenta, e quem mata é uma dupla de profissionais, um casal em que ele tem dificuldade para conter a mulher sanguinária. Aos poucos, fica claro que Peter só foi acolhido naquela função para ser usado como bode expiarório, se necessário.

Maratonei! Não consegui desgrudar o olho de nenhum dos dez capítulos, meu problema foi ajustar o extenso programa em meio a tanta festa. Vi também o novo longa de Florian Zeller, o dramaturgo que vem adaptando suas peças para cinema. Primeiro, O Pai, agora, Um Filho. O primeiro valeu a Anthony Hopkins um de seus Oscars, e ele volta como pai de Hugh Jackman e avô do adolescente perturbado que está no centro da trama. Papai abandonou mamãe, casou-se de novo e a nova mulher tem um bebê. O garoto vai morar com o pai e ao longo do filme surgem os sinais de sua perturbação. O jovem sofre de depressão, tem tendências suicidas. Deixa de ir à aula, fica andando por aí. Questionado pelo pai, fica repetindo que ninguém entende sua dor. Muitas vezes Zeller filma uma máquina de lavar, por que? Confesso que cheguei a pensar numa situação de terror, com a morte do maninho, o bebê.

Enquanto escrevo o post, vejo na TV o caso – real – de outro adolescente que esfaqueou professores e colegas numa escola de São Paulo. Uma professora morreu. O horror da realidade, já dizia Peter Bogdanovich – a propósito de seu Targets/Na Mira da Morte, de 1968 -, supera a ficção. A solução do drama fictício não veio pela possível morte do irmão, mas foi curioso assistir a um filme em que o divórcio é o vilão, após assistir ao doc sobre Nelson Carneiro – Até Que a Vida nos Separe. Estou tentando me lembrar. Em algum filme que vi recentemente há um quadro – Vida é o que ocorre enquanto a gente perde tempo com outras coisas, algo assim. Emília abre o filme dela com imagens do curta que projetou sua – nossa – amiga, Helena Solberg. A Entrevista, de 1966. Na legislação brasileira, a mulher, ao casar-se, virava, praticamente, propriedade do marido. Não conseguia gerir o próprio dinheiro, dependia do marido para tudo, em questões legais.

No Congresso, o político baiano foi um feminista avant la lettre, protegendo os direitos da mulher. Helena Ignez lembra o início da carreira do futuro deputado federal e senador na Bahia dos anos 1950/60. O curioso é que a história de Carneiro atravessa a história do próprio Brasil. Desde o começo dos anos 1960 foi defensor do parlamentarismo, foi um forte aliado de Ulisses Guimarães nos debates da Constituinte. O filme termina tecendo um retrato do Dr. Ulisses – Nelson Carneiro, de alguma forma, foi coadjuvante da própria história, exceto no episódio do divórcio. Gostei do filme da Emília, gostei de Dalva de Oliveira na trilha. Para fechar o post, no sábado, em Santos, a visita à casa do Zanin foi uma surpresa para mim. Zanin e Rosário moran num apartamento com vista para o canal de onde sai a balsa para o Guarujá. O canal é passagem de transatlânticos. Senti-me num filme de Federico Fellini. O Rex, de Amarcord. Ver passar aqueles palácios flutuantes, iluminados, foi de cortar o fôlego.

Cá estou, em casa, no início de mais uma semana. Estrearam, na quinta passada, 23, filmes que ainda não consegui ver. Vou iniciar à tarde, uma maratona para ver Raquel 1:1, Além de Nós e Skinamarink – Canção de Ninar. Imagino que John Wick 4 tenha feito barba, cabelo e bigode entre os lançamentos da semana. Assassin’s Creed, cravou a Total Film. Já contei muitas vezes que reajo com intensidade a cenas de ação. Lutas, sustos me fazem pular na poltrona. Na série com Keanu Reeves, por mais bem coreografadas que sejam as lutas, e são, não me mexi na poltrona, sinal de que a coisa não estava me pegando. Faltava um mínimo de espessura humana. Na série, The Night Agent, imediatamente me interessei pelo personagem Peter, pela Rose. Na próxima quinta, 30, deve entrar nova enxurrada de filmes, incluindo um dos melhores brasileiros recentes. Noites Alienígenas, de Sérgio Carvalho, que vem se somar a O Rio do Desejo, de outro Sérgio, o Machado. Chega de festa. Bora trabalhar!

Nosso segundo dia de festa. E a Mostra de Tiradentes no Cinesesc. E as amigas de La Situación, na estrada

Vamos descer daqui a pouco para o litoral, Emília Silveira, Orlando Margarido e eu, para o segundo dia de comemoração do aniversário dele. A ideia é almoçar no Paquito, um restaurante tradicional de frutos do mar, com Luiz Zanin Oricchio e Maria do Rosário Caetano. Almoçamos ontem com Marcus Fernando, Renata e Malu no Mocotó, o restaurante de comida sertaneja do chef Rodrigo Oliveira, na Vila Medeiros. Comemos, bebemos e depois fomos à casa do Marcus e da Renata para ouvir discos. Marcus fez – com Eduardo Ades – o documentário sobre Torquato Neto, Todas as Horas do Fim. É pesquisador da MPB. Tem uma impressionante coleção de discos – mais ou menos como meus livros e revistas de cinema. Ouvimos Dalva de Oliveira. Mentira de Amor, que ela compôs, além de cantar divinamente. ‘Querem saber afinal
Qual a solução
Querem saber o final
Daquela paixão
Daquele grande amor
Que a todos interessou
Querem saber qual o final
Da nossa união.’ Para arrematar, Marcus colocou o Reunión Cumbre, Astor Piazzolla e Gerry Mulligan. Años de soledad, Adiós Nonino. Não consigo ouvir essas músicas sem lembrar da Teresa, minha prima negra, uma das mulheres mais bonitas que vi na vida. Teresa me lembra Marina, a prima libertária que assombra Letícia no doc de Márcio Debellián, Letrux.

Creio que já falei de Teresa – o nome era Cleonice Teresinha – no blog. Qualquer dia repito a história. Amor e preconceito. Garota negra e altiva, independente, apaixona-se por homem branco, e rico. O herdeiro de uma família poderosa. Separaram-se – foram separados. Ela se casou, teve filhas lindas. Será que só eu via a tristeza nos olhos de Teresa? E um dia ela se apagou, morreu. Já estava casado com a Dóris. Lembro-me de, ao chegar em casa, colocar a rodar Piazzolla. Adiós Nonino, Anos de Solidão. No meu imaginário, essas músicas estão ligadas a Teresa. A história dela daria um belo filme, mas quem poderia dirigí-lo? Quem sabe falar de amor, filmar o desejo no Brasil? Walter Hugo Khouri privilegiaria o sexo, a busca pela ascese na degradação. Não seria o caso. René Sampaio, claro, ou Sérgio Machado, ou Júlia Rezende. Chega de divagação.

Não tenho muito tempo para concluir o post. No Cinesesc, começou a Mostra Tiradentes em São Paulo. Na abertura, a sessão para convidados foi do filme vencedor da Mostra Aurora. As Linhas de Minha Mão, de João Dumans. O trabalho solo do parceiro de Affonso Uchôa é um filme maravilhoso. Um retrato de mulher. O retrato e, ao mesmo tempo, a construção desse retrato. A atriz Viviane Ferreira fala de sua experiência com arte e loucura. Imagino que outro filme de mulher também tenha sido trazido a São Paulo. O Canto das Amapolas, de Paula Gaitán, venceu a Mostra Olhos Livres. A relação de Paula com a mãe e a avó. A avó europeia e judia. Paula possui o segredo dessas tessituras, e texturas. Vai juntando os fragmentos – sempre com um olho para a beleza – e, como nas colchas de retalhos, suas observações, seus pedaços de realidade sempre terminam por fechar-se, fazem sentido.

Devo ter uns dez, 15 minutos para concluir o post. Quero falar da nova comédia de Tomás Portella, produzida por Iafa Britz, La Situación. Três amigas que estão levando vidas de m… partem em busca da herança que uma delas tem para receber na Argentina – na verdade, o filme foi feito no Uruguai. On the road, na estrada. Natália Lage, Júlia Rabello e Thati Lopes vivem 1001 aventuras. Envolvem-se com traficantes e com integrantes do movimento sem-terra. Admiro muito Iafa Britz, mulher forte, que adora contar histórias de mulheres fortes como ela. Portella é outro atraído pelo protagonismo feminino. Fez 4×100, mas quando evoco seu nome o que me vem é sempre o plano-sequência na abertura do terror Isolados, com Bruno Gagliasso.

Um plano elaborado e muito bem filmado que me deixou siderado quando o vi pela primeira vez. Pouca gente viu, ou deu valor àquilo. Sou duro na queda quando vejo comédias. Choro com facilidade nos melodramas, tomo cada susto que pulo na poltrona no terror, mas me fazer rir… São poucos. Jacques Tati, Buster Keaton. O próprio Charles Chaplin me faz sorrir. O filme que mais me faz rir é Um Convidado Bem Trapalhão/The Party, de Blake Edwards, com Peter Sellers, de 1968. Uma cena bem idiota. O ator indiano, Hrundi Bakshi, o convidado indesejado que arromba a festa, vai ao banheiro. Senta-se no vaso. Puxa o papel higiênico. O rolo não para de rodar até que todo o papel forma um monte no chão. Peter Sellers olha seríssimo para aquilo. Sua homenagem a Buster Keaton? Eu quase morro de rir. Já vi o filme 100 vezes – umas dez, pelo menos – e o efeito é sempre o mesmo. Quá, quá, quá.

La Situación tem a cena na fronteira. As amigas estão levando o carro cheio de drogas no porta-malas. Na parede, tem a foto de uma delas, procurada pela polícia como perigosa. A mamma dos sem-terra. O guarda vai descobrir a muamba, vai ligar a foto à pessoa? O desfecho da cena é hilário. Dei uma gargalhada, coisa rara, na cabine de imprensa. Os coleguinhas me olharam pelo canto do olho. Velho maluco, devem ter pensado. Dudu Azevedo é o agente da Polícia Federal. Tenta roubar o protagonismo do trio, mas não consegue. O poder é delas. Contei minha reação para o Portella. Ele me superestima. Disse que me fazer rir já foi um prêmio. Fazer rir o grande público seria o prêmio, isso sim, mas para isso as pessoas precisam sacudir-se. Sair de casa, abandonar o streaming e ir ao cinema. Retomar o hábito. Duvido que, quem fizer isso, não ria como eu ri. La Situación!

O ‘meu’ Sirk. E quem lidera a lista de dez mais de Wim Wenders na Sight and Sound? Surpresa!

No post anterior, ao falar sobre a releitura de Douglas Sirk por Todd Haynes – Longe do Paraíso -, achei que precisaria de um atalho meio longo para dizer que o próprio Sirk entrou na lista de 100 melhores filmes de todos os tempos da Sight and Sound, e foi com o filme dele que prefiro. Imitação da Vida, de 1959, ficou em 75º lugar, empatado com O Intendente Sancho, de Kenji Mizoguchi, e antes de A Aventura, de Michelangelo Antonioni. Sempre me impressioneui muito com o desfecho de Imitation of Life, o funeral da mãe preta e a erupção, aos prantos, da filha que a renegava para passar por branca. Mães e filhas, diovisões sdociais e raciais. Lana Turner e Sandra Dee, Juanita Moore e Susan Kohner. O galã dessa vez é John Gavin, com quem Sirk fez seus dois últimos filmes na Universal – esse e o anterior A Time To Love and a Time To Die/Amar e Morrer, John Gavin. Concordo com Odie Henderson, justificando seu voto – The greatest tearjerk ever made. Vi o filme no lançamento, sim!, e depois o revi inúmeras vezes. No SBT, numa certa época, passava rebatizado como Odeio Minha Mãe.

Sandra Dee já havia feito cinco ou seis filmes antes do Sirk, mas foi depois que vieram Gidget/Maldosamente Ingênua e Amores Clandestinos, que abre a série de melodramas de Delmer Daves estrelados por Troy Donahue. Susan Kohner, a negra de pele clara, que se faz passar por branca – e toma uns tapas de Troy Donahue por isso, expondo o racismo da época – foi depois a mulher de Freud na cinebiografia do pai da psicanálise por John Huston, Além da Alma. Ao escrever o título lembrei-me da deslumbrante fotografia em preto e branco e do que li na Total Film sobre o Oppenheimer de Christopher Nolan. “Pela primeira vez conseguimos filmar em preto e brasnco no formato Imax.” O PB no Nolan com certeza quer realçar o caráter de documento do filme. Me deu ainda mais vontade de ver Oppenheimer. Vera Moreira, em seu comentário, tem toda razão. Inventar a bomba foi ciência, usá-la para derrotar o Japão na 2ª Guerra foi uma decisão política. A foto que abre o texto sobre Oppenheimer é do depoimento dele no Congresso dos EUA. É impressionantemente ‘real’.

Cada vez que olho as listas individuais de dez mais na S&S encontro material para novos posts. Stanley Kramer foi um produtor e diretor de filmes ambiciosos de Hollywood nos anos 1950 e 60. Kramer era desdenhado pela crítica por seus filmes de ‘mensagem’. Chamavam-no de demagogo. A bomba atômica, para emendar com Oppenheimer, em A Hora Final, a teoria evolucionista em O Vento Será Sua Herança, o nazismo em Julgamento em Nuremberg, o racismo em Adivinhe Quem Vem para Jantar?, etc. Jean Tulard é particularmente duro com o primeiro, que define como ‘pretensioso’, e o último, o triunfo dos bons sentimentos. Confesso que me surpreendeu ver Wim Wenders, um dos arautos da (pós-)modernidade abrir sua lista com On the Beach, que não é outro senão A Hora Final. O apocalipse atômico. Gosto do que diz Wenders. “Essa é a minha lista hoje. Amanhã poderá ser outra.” A Hora Final, Enter the Void, Viagem Alucinante/Gaspar Noë, Bom-dia/Yasujiro Ozu, O Rei da Comédia/Martin Scorsese, Um, Dois, Três/Billy Wilder, Os Aventureiros/Robert Enrico, com o Funeral Submarino, A Sereia do Mississippi/François Truffaut, Daunbailó/Jim Jarmusch, Barfly/Barbet Schroeder, Paraíso Infernal/Howard Hawks.

Já contei de minha surpresa ao ver Rocco e Seus Irmãos entre os melhores filmes de Bong Joon-ho. Esperaria essa escolha muito mais de James Gray. Quando o entrevistei, e ao elenco de The Yards/Caminho sem Volta, de 2000, Charlize Theron contou-me que Gray havia mostrado Rocco a seus atores, como exemplo do clima que pretendia alcançar. Gray, Martin Scorsese e Nicolas Winding Refn preferiram colocar outro Visconti na lista – O Leopardo, 90º colocado.

É dia de festa. Festa também no Sesc Digital, com filmes de Márcio Debellian, Todd Haynes e o doc de Samantha Fuller sobre seu pai

(Entendo perfeitamente que o presidente Lula queira ver o ex-ministro Sérgio Moro arder no inferno, mas as declarações dele nesta semana foram o que Gerson Camarotti, no Bom-Dia Brasil desta sexta, chamou de tiro no pé. Deram munição à imprensa contra ele. Bem antes da formalização das denúncias contra o ex-juiz, o livro de Paulo Moreira Leite já expusera sua conduta pouco ética. Há anos falo disso no blog, já falava no anterior. O que me pergunto é – Moro, mesmo eleito senador, já era um morto-vivo. Deixem-no no Congresso com aquela voz chata que havia tempos não ouvíamos, porque não interessava mais. Ontem, foi uma overdose. Vou de teoria conspiratória – a direita, sem Jair Bolsonaro, precisa de uma liderança. Será Moro de volta? Uma reconstrução de sua narrativa ‘heroica’? O homem quase destruiu o Brasil. Jesus!)

Hélio Fogaça me diverte muito com seus comentários ferinos. Esculhambou Katharine Hepburn, apesar do seu prestígio estabelecido por quatro Oscars como melhor atriz. Mas nem o Fogaça consegue ser mais mordaz do que foi Elia Kazan com ‘Kate’. Ela foi atriz dele em Sea of Grass/Mar Verde, de 1947. Kazan contava que se emocionou quando viu Katharine chorar diante da câmera. Depois, passou o restante do filme tentando segurar a insuportável mulher – ele também a definia assim – que chorava por qualquer coisa. Outro comentário do Fogaça não poupa Caio Blat nem Maria Fernanda Cândido nas futuras estreias de Grande Sertão – Veredas e A Paixão Segundo G.H. Ri-me, mas não desisto de ter expectativa pelos filmes de Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho.

Marcamos, os amigos, um almoço hoje à tarde para comemorar o aniversário de Orlando Margarido. Parabéns a você! Muito provavelmente farei mais um post ou dois agora pela manhã e, à tarde, sairei do ar. Além de Gabriel Leone, também entrevistei ontem Márcio Debellian, diretor de Fevereiros, sobre Maria Bethânia, e agora de Letrux, que chegou na quinta, 23, ao Sesc Digital. Será possível ver o média, e de graça. Debellian sabia que poderia ter problemas para exibir seu trabalho pelo formato. Nem longa, nem curta, Letrux tem dificuldade para se ajustar no ‘mercado’. A plataforma do Sesc Digital é a ideal para ele. Debellian já conhecia Letícia Pinheiro de Novaes há anos. Convidado a dirigir o doc, achou que não cabia mais centrar fogo no CD que ela lançou antes da paralisação da pandemia. Aos prantos. Letícia, além de cantora e compositora, é atriz. Debellian partiu para um retrato íntimo.

A vida como frenesi. Mesmo eu, que desconhecia a artista, encantei-me por ela. Letícia lembra os verões na casa de praia da avó, em Sãso Pedrto da Aldeias, no litoral do Rio.. A prima Marina, a rebelde da família, que morreu cedo. Sua aproximação de outra  Marina, a Lima. Mar-ina. O mar é personagem dessa história, como Letícia. Como a música e a poesia que tanto atraem Debellian. Ele foi roteirista e argumentista de Palavra (En)Cantada. Foi quem levou o projeto do doc a Helena Solberg, e ela fez aquele lindo trabalho. Debellian prepara agora, para o Canal Brasil, uma série e outro doc de longa metragem sobre um assunto que pode render muita polêmica, mas que também parece necessário por abordar um dos últimos redutos do preconceito. A homossexualidade no futebol. O armário do vestiário.

No Sesc Digital também entraram ontem uma ficção e outro documentário que preciso destacar. Gosto muito de Longe do Paraíso. Todd Haynes contou repetidas vezes como chegou ao melodrama, e a Douglas Sirk, através dos seminários de Lacan. Far From Heaven, de 2002, é uma releitura de Tudo o Que o Céu Permite/All That Heaven Allows, de 1956. No Sirk, Jane Wyman fica viúva, os filhos lhe dão de presente uma TV, para mitigar sua solidão. Jane inicia um romance com o jardineiro, interpretado por Rock Hudson, com quem Sirk fez quase todos os seus suntuosos melodramas. Na ficção de Haynes, Julianne Moore descobre a homossexualidade do marido. Envolve-se com o jardineiro, que é negro – e interpretado por Dennis Haysbert. Dennis Quaid, que faz o marido, a acusa de estar querendo destruir sua reputação na comunidade. Um preto! Para ele, sua homossexualidade não é uma questão.

Não sei se vocês vão concordar comigo. Até ganhar o Oscar, Julianne era muito rigorosa na escolha de seus papeis. Parecia estar sempre de olho na estatueta da Academia. Depois, relaxou. Hoje em dia me dá a impressão de fazer não importa o quê. Acho-a impressionante nesse filme e em Fim de Caso, de Neil Jordan, outra história de amor e traição, com base no romance de Graham Greene, feita dois anos antes de Longe do Paraíso. O outro filme, o doc, ainda não vi. A Fuller Life foi dirigido pela filha do grande  Sam, e ela se chama Samantha. Durante anos, Sam Fuller foi um dos mais bem guardados segredos de Hollywood. Seu cinema de gênero – westerns, policiais – era desconsiderado pela crítica ‘séria’. Os franceses o descobriram e colocaram num patamar.

Em Pierrot le Fou/O Demônio das Onze Horas, de Jean-Luc Godard, o próprio Fuller dá sdua receita de cinema. Compara-o a um campo de batalha, e conclui que é emoção. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard cita outra declaração. “Para mim, e em todos os países do mundo, os filmes são feitos para ganhar dinheiro. Talvez uns 5% sejam de homens – ele não cita as mulheres; outros tempos – que tinham uma ideia e precisavam conta-la. Nunca fiz um filme obrigado pelas circunstâncias. Fiz todos porque queria fazer. Tinha uma ideia e queria contá-la.” Cada um tem seu Fuller. O meu é o mais próximo do que chegou do melodrama o grande diretor de filmes violentos – Naked Kiss/O Beijo Amargo, de 1964. Constance Towers, uma atriz fabulosa, faz a prostituta que se casa com milionário. Não sabe que ele quer usá-la como fachada para mascarar seu vício. É pedófilo. Ela descobre. Poderia silenciar, mas não é isso que faz uma heroína de Fuller. Bora ver A Fuller Life?

Gabriel Leone. Nosso príncipe da representação, do rio do desejo às Mil Milhas

Há um momento de O Rio do Desejo, o longa que Sérgio Machado adaptou de O Adeus do Comandante, de Milton Hatoum, de A Cidade Ilhada, em que Anaíra/Sophie Charlotte dança na casa ribeirinha. Seu marido, e Daniel de Oliveira é marido da atriz na vida, partiu em viagem, ela fica na casa com os cunhados que a desejam. Rômulo Braga castra o próprio desejo, Gabriel Leone é mais jovem, impetuoso. Quando Anaíra põe a mão dele em sua cintura, o espectador sente a vertigem do desejo. Esse cara está perdido. Mais tarde, ela o segue e fecha a porta atrás de si. A cena nem precisaria ir adiante.

Conversei com Gabriel no início da tarde de ontem, no hotel em que estava hospedado, na região da Berrini. No que seria o dia de aniversário de Ayrton Senna – 21 de março -, a Netflix divulgou a foto de Gabriel Leone com o capacete do piloto, anunciando a série a ser dirigida por Júlia Rezende. Lembram-se? Contei que, ao entrevistar Júlia por A Porta ao Lado, perguntei-lhe o que ia fazer na sequência e ela desconversou – ‘Não posso dizer.’ Até brinquei – ‘Então é uma nova série da Netflix, após a da Boate Kiss.’ Não deu outra. Bastou a foto para que a notícia corresse mundo, como rastilho de pólvora. ‘É a força do Ayrton, ele é um ícone mundial’, palavra de Gabriel. De Hollywood, Adam Driver cumprimentou seu colega no elenco de Ferrari, que filmaram na Itália, com direção de Michael Mann.

Um recorte na vida de Enzo Ferrari, o criador da escuderia. Gabriel observa que Driver não é parecido, fisicamente, com Ferrari, mas sua criação é impressionante. Ele próprio não se parece com Senna, mas não duvida nem um pouco que também poderá ser convincente como o piloto. Ainda tem pela frente um longo trabalho de preparação, mas confia no próprio taco. Atuar é o que sabe fazer, o que gosta de fazer. Não está sendo arrogante. É um ofício, como carpintaria ou magistério, que ele executa com entrega. Embora jovem, Leone já tem uma galeria de personagens marcantes no currículo. Foi eleito melhor ator do ano passado pela APCA por Eduardo e Mônica, que René Sampaio adaptou da música de Renato Russo. Alice Braga e ele, o casal do filme, os melhores. Ela também venceu o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Em plena pandemia, Eduardo e Mônica ficou um tempão em cartaz. Foi um filme que chegou ao coração do público.

O amor, o desejo, o sexo. O que aproxima, mas também o que dificulta a ligação das pessoas. Eduardo tem apenas 16 anos, Mônica tem mais idade, e experiência. ‘Mesmo quem não é fã do Legião Urbana, e eu sou legionário, gosta do filme pela energia solar.’ Gabriel me confirmou o que Sophie já havia dito em outro post. O elenco de O Rio do Desejo foi preparado por Fátima Toledo. Ela faz um trabalho de biogenética. Trabalha o emocional, mas também a fisicalidade dos atores. Estabelece um clima de confiança. Afeto, cumplicidade já existiam de antes. Gabriel já havia trabalhado com Sophie, com Daniel. A intensidade das cenas de sexo é agora palpável. É um material que Sérgio Machado gosta de trabalhar. O erotismo inflamava Cidade Baixa, com Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga. Daria para falar posts e posts sobre O Rio do Desejo. Mas não dava para perder a oportunidade – quem me segue sabe da minha admiração por O Último dos Moicanos, O Informante, Ali, Colateral, Inimigos Públicos. Pelo cinema de Michael Mann.

No blog anterior, muitas vezes fiz a ponte entre O Informante, Colateral e o personagem sofista do italiano Elio Petri em Os Dias São Numerados. Infelizmente, nunca tive oportunidade de entrevistar Mann para ver se é uma ideia minha, ou se procede. Gabriel contou-me que morou em Módena por quatro meses, à disposição de Mann na cidade em que o commentadore Ferrari construiu seu império. Faz um piloto espanhol. O primeiro Mann a gente não esquece. O dele foi O Último dos Moicanos, que viu na madrugada da Globo, com o pai. Seu Luís sempre amou os épicos. O filho deu-lhe um belo presente. Levou-o à Itália e o apresentou a Mann. O próprio cineasta convidou-o para o set.

Ao longo de sua carreira, desde Maratona Final, de 1979, ou seja, 44 anos, Mann fez apenas 11 filmes. É meticuloso ao extremo. Ferrari foi gestado durante 20 anos. O diretor cuidava de todos os detalhes. O piloto espanhol usa um cinto cuja fivela foi motivo de uma longa busca. Mann procurou até encontrar o que não sabia direito que estava procurando. Como David Fincher e Lars Von Trier, Mann usa tecnologia digital para expressar/reproduzir na tela as transformações do mundo. Gabriel encantou-se pela forma como o diretor utiliza a lente zoom para penetrar na intimidade de seus atores/personagens. O filme desenvolve-se em dois grandes núcleos – o familiar e o profissional. No familiar, Ferrari é casado – com Penélope Cruz -, perdem um filho. No profissional, a grande disputa é no circuito Mille Miglia, a relação com os pilotos. O piloto espanhol é um personagem real.

Gabriel não contracenou com a almodovariana Penélope, mas esteve com ela na leitura de mesa. ‘É gente finíssima’, define. Ele não sabe se estará disponível para vir receber seu prêmio da APCA. Na época, junho/julho, estará filmando Senna na Argentina. Mas virá, com todo prazer, porque se trata do seu primeiro prêmio importante. À espera de Ferrari, de Senna, vale vê-lo no Sérgio Machado. Gabriel, Charlotte, Sérgio e os outros – Daniel de Oliveira, Rômulo Braga. O Rio do Desejo já está em cartaz. O que o diretor me disse vale para quem lê – ‘Desse (filme) você vai gostar.’ O desejo do título imprime nas imagens que reproduzem o calor, a luminosidade do rio, da mata.

Sérgio disse de seu filme que é sobre três homens que não conseguem dar conta de uma mulher forte – e bela. Vivem nas sombras de seus desejos. Anaíra abre portas, janelas para que entre a luz. O desfecho – olha o spoiler – trágico passa pelo personagem de Gabriel. Só pelo personagem. Ali, diante de mim, ele sorri, de bem com a vida, o trabalho. Abençoado. Gabriel está arrombando as portas de Hollywood? Aos 29 anos – fará 30 em 21 de julho -, ele segue a trilha de Rodrigo Santoro e Wagner Moura. Não é o único ator brasileiro a obter, nesse momento, repercussão internacional. Em Paris, nem as greves contra as mudanças do presidente Emmanuel Macron na Previdência impedem o público de lotar o teatro em que Armando Babaioff se apresenta na peça Tom na Fazenda, já filmada por Xavier Dolan.

Comentando os comentários. E algumas promessas nacionais e internacionais em 2023

Emociona-me ver, nos comentários do blog, como as pesssoas levavam a sério a coluna de filmes na TV que sempre fiz com tanto carinho. Vera Moreira pesquisava para mim os filmes e horários na época da Gazeta Mercantil, a Léo fazia o mesmo no Estadão. Tinha gente que dizia que era absurdo eu perder tempo. Devia fazer uma carteira e repetir o texto a cada nova apresentação dos filmes. Eu sempre me recusei, e até buscava lincar a apresentação a algum acontecimento da semana, do dia, copmo se fosse possível, e não é?, um olhar novo mesmo sobre o já-visto. Nos comentários do post sobre Nada de Novo no Front, Guido Cavalcanti cita um filme de guerra de G.W. Pabst do qual nunca tinha ouvido falar, Westfront 1918. Fui pesquisar e conheço, sim, mas com o título brasileiro – Guerra, Flagelo de Deus. Ana Líbia concorda comigo que 1917 é muito melhor, mas não tenho muita certeza se ela se refere ao alemão que venceu o Oscar de melhor filme internacional deste ano ou ao Sam Mendes, quando diz que não chega aos pés de Vá e Veja.

Gosto demais da obra-prima do russo Elem Klimov, que Kleber Mendonça Filho coloca entre seus dez melhores filmes de todos os tempos na lista da Sight and Sound, mas minha história com 1917 é mais visceral. Não quero convencer ninguém de nada, mas o longa de Sam Mendes e seu admirável fotógrafo, Roger Deakins, me toca de um jeito que não consigo explicar. As cenas do soldado deslisando na água e chegando à terra firme onde o grupo entoa a canção me toca sempre. Fico com vontade de chorar, e choro. Cinema, por mais que ame o ato coletivo de ver filmes na sala escura, é experiência individual. Enquanto eu digo que choro, Saymon Nascimento comenta que 1917 simplesmente não aconteceu para ele. E é assim que a coisa funciona. Matheus Nahkur lembra outra versão de All Quiet in the Western Front. Sim, a de Delbert Mann, de 1979, feita para TV, de onde veio o diretor que ganhou o controverso Oscar de 1955 com Marty.

Nunca vi o filme, e até gostaria. Encontrei no Google o título brasileiro, Adeus à Inocência. Richard Thomas faz o protagonista, Paul, e Patricia Neal é sua mãe. Gosto de ler os comentários que, não raro, me motivam a escrever novos posts, como esse. Celso Daniel da Silva, o Celdani, é mais Vertigo/Um Corpo Que Cai na lista da S&S. Lembra que Kim Novak, que faz o duplo papel de Judy/Madeleine, completou 90 anos em 13 de fevereiro. A data passou-me despercebida, mas pretendo resgatá-la. Agora pego carona no post sobre Cyril Endfield, e Zulu. Citei Perdidos no Kalahari, a impressionante cena de Stuart Whitman com os babuínos, e Hélio Fogaça conta que é assombrado por ela, mas considera o filme deprê. Fernando Severo prefere citar outro filme do diretor, A Ilha Misteriosa, com Michael Craig, adaptado de Jules Verne e valorizado pelos efeitos arrebatadores de Ray Harryhausen. Deserto, aventura, mistério. Do nada me veio um dos últimos filmes de Alexander Mackendrick, Sammy Going South/Sozinho Contra a África, de 1963, com Fergus McClelland – tive de pesquisar para ver quem fazia o garoto. Durante dez anos, ele atravessa a África, saindo do Canal de Suez para chegar à África do Sul.

Todos esses filmes, de Endfield e Mackendrick, foram feitos num mesmo período – 1960/64. Atiçavam minha imaginação, mas chega de olhar para o passado. Vamos fazer um exercício de prospecção, olhando para o futuro. Já falei da Cahiers que, na edição de março, com Pedro Almodóvar na capa – Cineastes au Travail -, nos projeta, leitores e espectadores, na fábrica dos filmes de amanhã. Almodóvar, Richard Linklater, Catherine Breillat, Alain Guiraudie, etc. Seus novos filmes são apostas da revista para o cinema autoral de 2023. A norte-americana Total Film, mais ligada à grande indústria, também faz suas apostas e abre com Christopher Nolan a sua preview do ano. A cinebiografia do criador da bomba atômica – Oppenheimer, com Cillian Murphy e Emily Blunt.

Sempre me impressionei muito com o que disse Robert Oppenheimer após testemunhar os estragos causados por sua invenção. Ele citou o livro sagrado dos hindus, Baghavad-Gita, “Eu me tornei a Morte, o destruidor de mundos.” Façam o retrospecto da obra grandiosa de Nolan e me digam se não tem tudo a ver com a estética, e os personagens, que ele vem elaborando com absoluta coerência, num terreno tão minado como o dos blockbusters. Folheando a revista já fiquei na expectativa de outros dois lançamentos – Guardiões da Galáxia Volume 3, de James Gunn, que marca a fase 5 do Universo Marvel, centrado no delicioso personagem de Rocky Ragum, e o mais incrível. Tanto temos falado de Steven Spielberg -candidatura no Oscar, Urso de Ouro de carreira – e, em nenhuma dessas instâncias, ouvi falar que o próximo filme dele seria/é… o reboot de Bullitt, o thriller de Peter Yates com Steve McQueen, de 1968, que amo. Aquela corrida pelas ladeiras de São Francisco pode não ter sido a primeira, mas virou emblema de incontáveis imitações nos anos e décadas seguintes. Exatamente dez anos antes, e também nas ruas de São Francisco, Don Siegel filmou outra corrida memorável em O Sádico Selvagem, com Eli Wallach. Amor, Sublime Amor, Os Fabelmans, Bullitt – Spielberg estará revisando não só a própria história, mas a de Hollywood?

O que também não falta é expectativa em relação a estreias do cinema brasileiro. Luiz Fernando Carvalho deve, enfim, lançar sua Clarice Lispector com Maria Fernanda Cândido. Existe a promessa do novo filme de Kléber Mendonça Filho com Wagner Moura. Sophie Charlotte é a Gal de Dandara Ferreira e Lô Politi no longa que conta a história da voz de cristal da MPB. E Guel Arraes e Jorge Furtado, diretor e roteirista, fizeram a sua leitura contemporânea do clássico Grande Sertão – Veredas, de Guimarães Rosa, passada na favela.