Gramado (4). O dia em que Carlos Adriano dançou no palco do festival

GRAMADO – Gostaria de ter participado do debate sobre o longa que o português Leonel Vieira realizou no Brasil, mais especificamente, no Rio, mas tinha entrevistas – por Zoom – agendadas para as 13 h e o debate sobre o longa de José Eduardo Belmonte, O Pastor e o Guerrilheiro, realizado antes, durou até quase 12h30. Tive de correr para o hotel. O Último Animal lembrou-me Amores Perros/Amores Brutos, que colocou o mexicano Alejandro González-Iñárritu no mapa do cinema mundial. É um filme de impacto. Começa com uma colisão – um caminhão atinge uma viatura da polícia. A narrativa retrocede – um mês antes.

De alguma forma Leonel Vieira fez o seu O Poderoso Chefão. No épico de Francis Ford Coppola, o mais improvável dos filhos de Dom Vito Corleone – Michael – assume o poder na Máfia. Sem dar spoiler, algo parecido ocorre em O Último Animal. Saquei desde logo que isso ocorreria pela narração em of, mas queria ver ‘como’. Ouvi que o filme é feio, que a fotografia é suja, e é verdade, mas é intencional, para ressaltar a urgência. Em vários momentos, a própria angulação é tão esdrúxula que parece câmera oculta. Os personagens são clichês, outra crítica que ouvi. O lugar-tenente que abusa do garoto e ele vira a filha trans bastarda? Decididamente vi outro filme que meus colegas ontem à noite. Sobre o Belmonte, impressionou-me muito o personagem do pastor evangélico, interpretado por César Mello. Que que é aquilo?

Luiz Zanin levantou uma questão interessante. O pastor de Belmonte, que divide a cela da ditadura com o guerrilheiro Johnny Massaro, foge à representação caricatural da maioria desses personagens no cinema brasileiro atual. Claro que se trata, essa representação, de uma tomada de posição face ao que ocorre no País. A primeira-dama não fez uma cerimônia de descarrego no Palácio do Planalto, ou do Alvorada, sei lá? Jair Bolsonaro depende muito dos evangélicos para o seu projeto de reeleição. A perspectiva pode ser atual – a memória reinventada hoje -, mas os fatos relatados em O Pastor e o Guerrilheiro referem-se à guerrilha do Araguaia, aos anos 1970, e a um encontro marcado no réveillon de 2000. Naquela época, as igrejas pentecostais estavam tomando forte, ainda não tinham revelado seus tentáculos rumo ao poder – como Leonel Brizola antecipou que ocorreria, lembrou o produtor Nilson Rodrigues.

Lembrei-me de outro filme sobre evangélicos. Santa Cruz, de João Moreira Salles, é de 2000. Mostra como populações periféricas, de excluídos, aderiam às religiões evangélicas porque eram inclusivas, lhes ofereciam o que não tinham – cidadania. Toda vez que reencontro João- e agora faz tempo que não -, lhe cobro o retorno a Santa Cruz. Ver como e onde estão aquelas pessoas, quem sabe para nos ajudar a entender melhor a força desse movimento religioso que atualmente alimenta a alienação política no País. Volto ao Leonel Vieira. O personagem que representa a escrotidão – o gringo – tem um momento de grandeza que me tocou. E a trans é a mulher forte dessa história. Acho que há muito mais coisas para se discutir, e avaliar, do que as pessoas com quem tenho falado percebe. E nada disso sinaliza para o meu voto, como integrante do júri da crítica. Nem eu sei, ainda.

Temos chão até o final do festival. Não posso deixar de citar o discurso de agradecimento de Joel Zito Araújo, ao receber o Troféu Eduardo Abelim. Lembrou a mãe dele, empregada doméstica, e disse que todo o seu cinema – todas as maravilhosas figuras de mulheres que criou – a homenageiam, mas agora ele tem uma mulher tão maravilhosa quanto. E, claro, é preciso falar – de novo, já escrevi no blog – sobre o curta de Carlos Adriano, Tekoha. Perdão, Julio Bressane, por quem tenho o maior respeito e admiração, mas Carlos Adriano, com seus curtas, talvez seja hoje o mais exigente autor do cinema brasileiro. O mais erudito? Tem uma entrevista dele, antológica, feita por Francis Vogner e Marcelo Miranda, que recomendo. Uma trepada com o cinema. Carlos Adriano lembrou os mortos em defesa dos povos originários, destacando os que se foram somente durante esse (des)governo hediondo que nos oprime. Mas Carlos Adriano estava feliz! Foi performático – dançou no palco do Palácio dos Festivais. É um dos momentos que guardarei no festival de 2022.

Autor: Luiz Carlos Merten

jornalista

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